"O amor nunca morre de morte natural.
Añais Nin estava certa. Morre porque o matamos ou o deixamos morrer. Morre
envenenado pela angústia. Morre enforcado pelo abraço. Morre esfaqueado pelas
costas. Morre eletrocutado pela sinceridade. Morre atropelado pela grosseria.
Morre sufocado pela desavença. Mortes patéticas, cruéis, sem obituário e missa
de sétimo dia. Mortes sem sangramento. Lavadas. Com os ossos e as lembranças
deslocados. O amor não morre de velhice, em paz com a cama e com a fortuna dos
dedos. Morre com um beijo dado sem ênfase. Um dia morno. Uma indiferença. Uma
conversa surda. Morre porque queremos que morra. Decidimos que ele está morto.
Facilitamos seu estremecimento. O amor não poderia morrer, ele não tem fim. Nós
que criamos a despedida por não suportar sua longevidade. Por invejar que ele
seja maior do que a nossa vida. O fim do amor não será suicídio. O amor é
sempre homicídio. A boca estará estranhamente carregada. Repassei os olhos
pelos meus namoros e casamentos. Permiti que o amor morresse. Eu o vi indo para
o mar de noite e não socorri. Eu vi que ele poderia escorregar dos andares da
memória e não apressei o corrimão. Não avisei o amor no primeiro sinal de
fraqueza. No primeiro acidente. Aceitei que desmoronasse, não levantei as ruínas
sobre o passado. Fui orgulhoso e não me arrependi. Meu orgulho não salvou
ninguém. O orgulho não salva, o orgulho coleciona mortos. No mínimo, merecia
ser incriminado por omissão. Mas talvez eu tenha matado meus amores. Seja um
serial killer. Perigoso, silencioso, como todos os amantes, com aparência
inofensiva de balconista. Fiz da dor uma alegria quando não restava alegria.
Mato; não confesso e repito os rituais. Escondo o corpo dela em meu próprio
corpo. Durmo suando frio e disfarço que foi um pesadelo. Desfaço as pistas e
suspeitas assim que termino o relacionamento. Queimo o que fui. E recomeço, com
a certeza de que não houve testemunhas. Mato porque não tolero o contraponto. A
divergência. Mato porque ela conheceu meu lado escuro e estou envergonhado.
Mato e mudo de personalidade, ao invés de conviver com minhas personalidades
inacabadas e falhas. Mato porque aguardava o elogio e recebia de volta a
verdade. O amor é perigoso para quem não resolveu seus problemas. O amor
delata, o amor incomoda, o amor ofende, fala as coisas mais extraordinárias sem
recuar. O amor é a boca suja. O amor repetirá na cozinha o que foi contado em
segredo no quarto. O amor vai abrir o assoalho, o porão proibido, fazer faxina
em sua casa. Colocar fora o que precisava, reintegrar ao armário o que temia
rever. O amor é sempre assassinado. Para confiarmos a nossa vida para outra
pessoa, devemos saber o que fizemos antes com ela."
Fabrício Carpinejar
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