segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Limpando o porão



Você pode até achar que eu não sabia, mas o meu peito apertado, sempre apertado, mesmo quando você era a coisa mais amorosa que poderia existir no mundo, mesmo assim, meu peito vivia apertado como quem está prestes a descobrir uma grande mentira. E a nossa doce mentira era esta: um casal que parecia ter nascido um para o outro. Mas você querendo que eu fosse mais ambiciosa e eu querendo que você fosse menos materialista e a gente quase enfartando com as nossas ansiedades agudas diárias e um tal de casamento que não era nem morar junto, mas quase era. A gente viveu um quase tudo adornado de poesia. Uma farsa cheia de lirismo,álcool e descompensação emocional. Tudo tão intenso: o beijo, o sexo, as conversas, as trocas, as parcerias, as diferenças, as semelhanças, as brigas. Depois você: a vítima. Depois eu: precisando reavaliar meu temperamento difícil. Mas você tratava mal os porteiros do seu prédio e eu pensava que nunca me casaria com alguém que trata mal um porteiro, mas eu queria que você me pedisse em casamento, mesmo que fosse para eu recusar... Eu teria recusado.Você sempre tão querido com seus superiores, simpático e engraçado, e tão irritadiço com a minha falta de ambição e com os seus subordinados. Eu querendo publicar meu livro, você querendo um apartamento de 6 milhões de dólares no Leblon. E você não pensou nos dias que dormimos juntos na sua casa ainda vazia, quando só havia um colchão e os lençóis que emprestei quando, depois da sua casa montada pelos móveis que ajudei a escolher, arrumou minhas coisas em sacolas de plástico barato pra dizer educadamente numa grosseria até então desconhecida, que definitivamente, era o fim. Depois, sua viagem marcada sem que eu soubesse, suas malas que eu não ajudei a arrumar para que você não esquecesse as coisas mais importantes como suas cuecas e carregadores de celular. E eu chamava nossa história de amor de cinema e todos que nos viam achavam a mesma coisa... E eu sofri tanto a sua falta, mas o meu peito não apertava mais porque eu deixara aquela mentira de lado. Pode parecer estranho que eu toque neste assunto depois de tanto tempo, mas eu precisava limpar este porão e criar um atelier nele. Porque agora com meu coração em paz eu consigo criar, porque agora eu só consigo ver transparência nas pessoas, e não alguém sobressaltado com senhas para tudo como se quisesse proteger sua grande mentira. Desculpa eu mexer nesta sujeira que já estava repousada no fundo do copo, mas como eu já te disse, eu preciso limpar este porão e talvez o sótão. E com meu coração tranqüilo, transformar estes espaços trancados há tanto tempo, num espaço aconchegante de criação, num atelier emocional onde eu possa colorir alegremente minha roupa, minhas palavras, minha nudez, minha falta de ambição...

Marla de Queiroz

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